Carolina de Jesus: Literatura, Liberdade e Rebeldia.
Mulher negra, mãe solo de três filhos pequenos, catadora de papel, moradora da favela do Canindé, em São Paulo – essa foi Carolina Maria de Jesus. Leitora assídua, escritora, mulher trabalhadora que tinha um sonho e fez o que estava ao seu alcance para concretizá-lo. Hoje, se estivesse viva, Carolina teria 105 anos. Mesmo que ela não esteja mais fisicamente entre nós, seu legado literário permanece, e a memória dessa mulher que ficou tanto tempo no esquecimento, em algum canto empoeirado de um quarto de despejo, merece ser reconhecida e celebrada. Uma das primeiras autoras negras publicadas no Brasil, teve sua vida atravessada pela miséria e pela fome, Carolina narrou em seus escritos a vida dura que teve desde a infância. Além de instrumento de denúncia social produzido por alguém que efetivamente vivia nessas condições de vida devastadoras, suas mais de cinco mil páginas manuscritas, entre romances, contos, crônicas, poemas, peças de teatro, canções e textos de gênero híbrido, dotadas de estilo próprio, confrontam os ditames da tradição literária e da norma padrão culta da língua. Carolina foi publicada em mais de 40 países e traduzida para 14 línguas.
Natural da cidade de Sacramento, sudeste de Minas Gerais, Carolina Maria de Jesus nasceu em 14 de março de 1914. De origem muito humilde, era neta de escravos e uma entre os oito filhos de uma lavadeira analfabeta. Desde criança manifestava o desejo intenso de aprender a ler e a curiosidade incessante sobre o mundo — tudo perguntava, tudo queria saber. Incentivada por uma das freguesas de sua mãe, Carolina ingressa aos sete anos no Colégio Alan Kardec. Cursa a primeira e a segunda séries do primário, mas teve que deixar a escola, pois a mãe não conseguia mais manter a si e aos filhos na cidade e resolveu mudar-se para a roça. Moraram ainda em diversos outros lugares, como Ubatuba, Franca e Ribeirão Preto, sempre lidando com dificuldades. Passaram fome, frio, não tinham onde morar.
Carolina chegou a São Paulo em 1947. Sua rebeldia natural fazia com que não se adaptasse ao trabalho de empregada doméstica. No ano seguinte, engravidou de um português, que a abandonou. Na época, ninguém dava emprego para mãe solteira e Carolina foi morar na rua. Foi então que chegou à favela do Canindé: o governador paulista Adhermar de Barros mandara recolher todos os mendigos pelas ruas e despejá-los num grande terreno à margem esquerda do rio Tietê. Construiu seu próprio barraco, onde nasceram seus três filhos, João José (1948), José Carlos (1950) e Vera Eunice (1953), cada um de um relacionamento diferente. Carolina dizia que homem algum ia entender sua necessidade literária, pois estava sempre às voltas com os livros, os lápis, os cadernos, onde registrava tudo o que lhe cercava.
Carolina Maria de Jesus escrevendo em seu diário.
Em 1958, o jornalista Audálio Dantas, que visitava a favela com o intuito de escrever um artigo para o Jornal da Noite, entrou em seu caminho. Carolina mostrou a ele seus diários, cujos trechos acabaram por substituir o artigo que seria escrito pelo jornalista. Posteriormente, em 1960, foi publicado pela primeira vez o livro Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada, contendo trechos selecionados dos diários da escritora entre os anos 1955 e 1960. O livro esgotou as 10.000 edições da tiragem original já na primeira semana do lançamento, e desde então já vendeu mais de 1 milhão de cópias e foi traduzido para 14 idiomas.
O raro LP de Carolina cantando sua realidade através de composições próprias.
Entretanto o lampejo da fama durou pouco: em suas próprias palavras, Carolina tinha virado um artigo de consumo, alguém que é vista com curiosidade, mas descartada depois que a moda passa. Teve de voltar à condição de catadora de papel para garantir sua sobrevivência. Carolina Maria de Jesus morreu no dia 13 de fevereiro de 1977, com 63 anos, cansada, asmática, esquecida pelo mercado editorial, morando num sítio em Parelheiros. Os livros publicados depois de Quarto de despejo não tiveram o sucesso do primeiro. O descaso fez com que a autora fosse preterida pelo cânone literário, mas a magnitude de seu trabalho criativo ressurge, nos últimos anos, devolvendo-lhe o epíteto de grande escritora que ela sempre soube ser seu.
Em 1977, foi publicada postumamente a obra 'Diário de Bitita', com recordações da infância e da juventude. Em 1982, publicou-se 'Um Brasil para Brasileiros'. Em 1996, Meu Estranho Diário e Antologia Pessoal. Em 2014, as pesquisadoras Raffaella Fernandez e Maria Nilda de Carvalho Motta organizaram a coletânea 'Onde Estaes Felicidade', que trouxe textos originais da autora e sete ensaios sobre sua obra e, em 2018, lançaram 'Meu sonho é escrever – Contos inéditos e outros escritos', com narrativas da autora. A pesquisadora Raffaella Fernandez organizou o material inédito deixado por Carolina de Jesus em 58 cadernos que somam 5.000 páginas de textos: são sete romances, sessenta textos curtos e cem poemas, além de quatro peças de teatro e de doze letras para marchas de carnaval.
Em 2014, como resultado do Projeto Vida por Escrito - Organização, classificação e preparação do inventário do arquivo de Carolina Maria de Jesus, contemplado com o Prêmio Funarte de Arte Negra, foi lançado o Portal Biobibliográfico de Carolina Maria de Jesus e, em 2015, foi lançado o livro Vida por Escrito - Guia do Acervo de Carolina Maria de Jesus, organizado por Sergio Barcellos. O projeto mapeou todo o material da escritora, que passou a ser custodiado por diversas instituições, dentre elas: Biblioteca Nacional, Instituto Moreira Salles, Museu Afro Brasil, Arquivo Público Municipal de Sacramento e Acervo de Escritores Mineiros (UFMG).